17 de novembro de 2013

O bairro Almirante Reis em 1949


"Realmente, tem muita cor local, as valetas semeadas de folhas de lombarda e grelos de couve sugerem-nos nomes de terras típicas como Teguecigalpa, San Ramon del Equador, San Paco de Guayaquil, etc. Das oito da 'manhã até à uma da tarde as ruas pertencem aos vendedores e às trapeiras, uns gritando, apregoando e vociferando e as outras esgravatando nas imundices, espalhando-as pelos passeios e pela calçada. 
Quando trapeiras e vendedores ambulantes desaparecem (por volta da uma hora) todas as ruas do Bairro dos Actores ficam um caos. Mesmo que tenha passado o camião do lixo.
Uma das coisas mais características deste bairro é a quantidade de peixarias existentes. São muitas. Quase tantas como pastelarias. O turista que se aventure em certas ruas, aspira o ar carregado de cheiro a peixe, perguntando a si mesmo se o bairro dos actores não será antes um bairro piscatório, um porto de mar desconhecido. Uma vez desaparecida a legião das trapeiras aparece a legião dos «rapazes furiosos da bola», que se entretêm a dar pontapés numa bola de trapos (a maior parte das vezes feita com uma meia sub-traída à mãe ou às manas, e recheada com lenços ou pano do pó e da cozinha...) enquanto não se dedicam às lides mais sérias do autêntico futebol. 
Porque o Almirante Reis tem também os seus clubes desportivos e recreativos, assim como tem as suas igrejas católicas, um templo metodista, uma cozinha económica e uma quantidade invulgar de fotógrafos, dos chamados «de arte».
 Quando os «rapazes furiosos da bola» desaparecem, dá-se a invasão das «espadas». É é cada uma! São carros das marcas mais conhecidas e até de marcas desconhecidas. Automóveis fantásticos, fantasticamente luxuosos, cobertos de cromados, de para-choques, faróis, farolins, antenas de rádio, mas-cotes, espelhos, manettes, puxadores, com mais rodas, mais pneus de sobresselente, mais lugares, mais porta-bagagens que em parte nenhuma do mundo. 
São os carros dos «nouveaux seigneurs», os homens que construíram a «Lisboa do Futuro», a cidade do Almirante Reis, os construtores civis. Estacionam entretanto, não nas ruas principais, mas nos sítios onde ainda há prédios no estilo «gaioleiros» e carvoarias no estilo «Bairro Alto».
 Nada tem que ver com a esplendorosa perspectiva da Alameda Afonso Henriques, onde Almirante Reis principia a sua apoteose. Ninguém pode deixar de admirar o desenho sóbrio daquela linda praça enquadrada por soberbas ,construções e rematada pela fonte luminosa e pelo I. S. T. e os seus extensos e frescos relvados, ladea-dos dum empedrado ,em xadrez. Na relva brincam e retouçam os cães, que não lêem as ordens da Câmara. No empedrado lateral brincam as crianças. E a que cair e se aleije, apanha ainda por cima! É aí, na Alameda, que Almirante Reis principia' a ter um ar irreal...."
Revista Eva de Natal, 1949, Desenho de Bernardo Marques, Texto de Maria Antónia


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