30 de junho de 2010

Quando a (já) pouca inspiração adormece...

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Em arrumações que se arrastam, a ansiedade por uma filha que tarda em chegar a casa. Troca de mensagens (vá-se lá saber porquê, dado evitar prolongadas conversas telefónicas, os jovens preferem-nas às chamadas), acabo por receber a explicação: «Fui a uma oficina de escrita, mãe, quero inscrever-me… sabes quem lá estava? O Nuno Júdice! Fez uma palestra tão interessante! Quando chegar a casa, conto-te!». As palavras saem empolgadas enquanto, deste lado, roo uma maçã a tornar quase ininteligíveis as respostas. E como nem sempre surgem as ideias de escrita , associo de imediato este «pomo de ouro» a um belo poema que – por motivos profissionais – só há dias conheci. Fica então a curiosidade suspensa por cerca de duas horas, até saber detalhes sobre as palavras do poeta…

O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.

O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.

O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.

Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.

Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.

Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.

Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.

A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.

E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.

E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.

O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.


Nuno Júdice, A Matéria do Poema

4 comentários:

José Quintela Soares disse...

"Navego contra a corrente;
procuro a fonte, o silêncio frio de uma génese".

Talvez por isso seja, por vezes, tão injustamente esquecido.

teresa disse...

Um dia, à semelhança de tantos outros, será evocado... Mas contou com uma assistência entusiástica e o tema parece ter sido interessante: «a visão que os citadinos têm do campo».

Maggie disse...

não percebo a vida destes poetas.. enquanto vivos ng lhes dá a devida importância, quando morrem já são os maiores.
a falta de valor dada à literatura portuguesa é ridicula. e isto já dizia o camões. Que ele não tinha um olho, mas "via" tudo muito bem :)
ahah, foi uma experiência engraçada, surpreendente e acima de tudo enriquecedora, a de hoje na escrever escrever. beijocas

teresa disse...

Quanto à dita «escola de escrever», um destes dias ainda visito o local, fiquei curiosa:)
Beijinho*