27 de abril de 2009

Como em 1973 era fintada a censura

Image and video hosting by TinyPic
(a imagem representa uma outra encenação de Cemitério de Automóveis, esta da autoria do franco-argentino Victor Garcia)

Folheando uma revista que faz um breve estudo publicitário da censura, deparei-me com anúncios a espectáculos de revista no pré e pós 25 de Abril. Na página, são comparados cartazes da revista do teatro ABC “Com parra nova” limitando-se a alteração introduzida após Abril à legenda: “um espectáculo finalmente tudo a nu”; já à que se encontrava em cena no teatro Maria Vitória, foi substituído o título de “Ver, Ouvir e Calar” para “Ver, Ouvir e Falar”.
Apesar de na época me encontrar na adolescência, não pude deixar de pensar no modo como a censura era fintada. Há mesmo quem defenda que, para se não calar o importante, a imaginação e a criatividade seriam mais notórias do que quando se passou a poder dizer e mostrar o anteriormente proibido.
A mero título ilustrativo, evoco o tema “Tourada” de Ary dos Santos, poema de implacável crítica social , vaiado por alguns espectadores pró-regime quando foi vencedor da edição nacional do festival da canção, corria o ano de 1973.
Quanto a enganar com toda a evidência a censura, recordo ter assistido, com os meus pais, à peça de Arrabal “Cemitério de Automóveis”. O espectáculo memorável foi apresentado em Cascais, num teatro desmontável preparado para o efeito e, se não estou em erro, encontrávamo-nos no mesmo ano em que a referida canção interpretada por Fernando Tordo participou no Festival da Eurovisão.
Os actores brasileiros que se deslocaram ao nosso país, pertenciam à companhia Ruth Escobar, grande encenadora que conseguiu um trabalho notável e inovador para a época (ainda hoje o seria).
A encenadora montou um cenário gigantesco, com carcaças de automóveis e sucata, sendo “esmagador” o amontoado que se encontrava no espaço cénico, esse igualmente diferente de qualquer outro anteriormente apresentado, imenso, isento de barreiras e com entradas e saídas por toda a área onde nos encontrávamos a assistir à representação. Em ousadia, só o consigo comparar à encenação de João Mota para a peça baseada na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto na qual os espectadores se encontram, com os actores, numa enorme nau sobre um piso que se vai movendo, simulando as tempestades marítimas.
“Cemitério de Automóveis” é um texto dramático e perturbador, ainda o seria na actualidade ou não pertencesse a autoria a alguém tão polémico como Arrabal. Uma das personagens a viver no meio da sucata é traída pelos amigos, acabando crucificada na bicicleta de um polícia numa moderna alegoria da paixão de Cristo.
As marcas censoras traduziram-se na obrigatoriedade de ostentarem as personagens femininas enormes faixas adesivas sobre o peito a fim não exibirem a nudez total, mas a forte mensagem de crítica social, adesivos à parte, tornou-se muito mais incómoda do que qualquer espectáculo revisteiro com ou sem nudez evidente do pré ou pós 74.

8 comentários:

gin-tonic disse...

Por fintar a censura:
Quando Luís Filipe Costa, impedido de dar a notícia da prisão de Palma Inácio, dirigente da LUAR, acabou um noticiário do Rádio Clube Portugês com a frase: "hoje esteve um dia de calor, mas esta noite felizmente há luar,ficaram à espera de reacções da censura. Não houve. Os homens da censura não perceberam o "grito de liberdade" contido numa frase que o dramaturgo Luis Sttau Monteiro transformara em peça de teatro em 1961.

Informação retirada de uma reportagem de Marina C. Ramos publicada no "Público" s/d

teresa disse...

Tenho ideia - não sei se correcta - de que muitos dos censores não teriam conhecimentos para detectar esse "felizmente há luar", bem como outras expressões que a imaginação ditava a fim de não ficarem alguns "gritos" calados.
Qual seria o perfil dos senhores do lápis azul? Pessoas perspicazes? Não me recordo, nem me lembro de ter ouvido, por parte dos então mais velhos, comentários a propósito. No entanto, suspeito que haveria mais a vontade para "cortar" do que a capacidade para observar (e, a ser assim, ainda bem).

T disse...

http://diasquevoam.blogspot.com/2008/01/o-lpis-azul-da-censura.html

teresa disse...

Tks, vou espreitar:)

teresa disse...

... e agora que já espreitei posso afirmar que, pelo menos no exemplo postado, concluo que não existir critério nenhum, aliás, já o suspeitava depois de ter assistido à impressionante peça de Arrabal:)

Unknown disse...

Obrigada por esta partilha de vivências.

teresa disse...

... e nem imaginas como foi a peça marcante numa idade em que tudo é descoberta.

Tela Leão disse...

eu trabalhei nessa peça. chamo-me Tela Leão. Vivo hoje em dia em Portugal. Fizemos o espectáculo para 20 censores. Apesar de na altura o Brasil estar a passar por situação semelhante perante a censura, não tínhamos ainda visto uma tal quantidade de censores a assistir a um único espectáculo para censurá-lo. E sim... na nossa ingenuidade achamos que se estivéssemos de seios nus a censura mandaria cobrir os seios mas não cotaria o texto. Ingénuas nós... os censores decidiram que os seios tinham que ser cobertos... e o texto foi também cortado de tal forma que, por exemplo, a peça "Primeira Comunhão" virou o avesso de si própria. Para quem não conhece o texto, um resumo: a mãe dá conselhos tradicionalistas e retrógrados à filha que vai se casar. A filha, no original, responde: Sim mãezinha... mas em seguida faz uma pergunta que coloca em cheque os valores retrógrados da mãe. Os censores cortaram todas as falas da menina, que então só podia dizer "sim mãezinha"... em aceitação a tudo o que deveria estar a negar. Tentamos reagir colocando as tais bandagens nos seios. No dia da estreia ainda tínhamos uns algodões manchados com tintura de iodo a dar a impressão de os próprios seios terem sido cortados. Depois desistimos disso e ficamos pelas bandagens apenas. Por experiência própria... creio que a censura muitas vezes sabia muito bem o que queria cortar. O Cemitério de Automóveis tinha a vantagem de uma estética muito forte. Encenação de Vítor Garcia, Cenário de Nestor de Azardum,sendo a Ruth Escobar a produtora e no período da estreia a actriz principal das três peças que compunham o espectáculo. Depois foi substituída em duas delas pela Norma Benguel, e eu fiz uma das substituições também. Essa foi a experiência que mais me marcou naquela estadia em Portugal. Voltei ao Brasil, mas depois de alguns anos mudei-me para cá. Agora tenho dupla nacionalidade e tenho andado a trabalhar com programação. Mas tenho muitas saudades dessas experiências da minha vida de atriz, embora algumas sejam arrepiantes, como esse episódio dos cortes da censura portuguesa. Um abraço. Tela