28 de agosto de 2008

Salvador III

Chegou a hora do quotidiano milagre do pôr-do-sol. Vénus aparece, incendeia o céu por cima de Itaparica e tudo o resto fica na sombra. Os joggers da tarde esfalfam-se sem olhar para as cinco milhas de água cada vez mais escura que nos separam da ilha, em frente; as caipirinhas começam a aparecer em cima das mesas; os miúdos voltam das escolas acompanhados por mães cuja única vontade parece ser fazerem muitos mais ali, agora; o crepúsculo é rápido, quotidiano, mágico. E Vénus preside, sozinha, todas as noites. Só quando o milagre terminar se fará acompanhar.

5 comentários:

fugidia disse...

E onde está o Salvador III, caro Luís?

Bom trabalho e bom descanso, por aí.

Luís Serpa disse...

Oooops, numeração corrigida. Obrigado (e igualmente, já agora).

Luís Serpa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luísa A. disse...

Meu caro Luís, não me diga que Salvador não ganha outro encanto neste seu quadro, em que se expressam sentidos que a cidade real certamente não me despertaria (eu que tenho a visão orientada para os sinais estáticos da «arquitectura», mais do que para o movimento da vida).

Luís Serpa disse...

Luísa, obrigado.

É difícil apreciar Salvador de um ponto de vista arquitectónico: por atacado, 70% da cidade é constituído por favelas. No retalho, não há qualquer espécie de unidade visual mesmo dentro dos quarteirões normais, ou ricos. O pior convive com o melhor num alegre, ou ligeiro, ou inconsciente caos, como preferir.

Por mim, que prefiro a selva a qualquer jardim, gosto. Mas não da arquitectura: é a vida, anárquica, exuberante, irrefreada, que me seduz.

De resto, é lamentável. Prédios degradados (a fazer lembrar Lisboa, infelizmente, mas em muito maior quantidade), sujidade, uma agressão permanente aos sentidos (sobretudo o olfacto e o ouvido); Salvador é amável não pelo que se vê, mas pelo que se intui.

A pobreza, por muitos "Tortilla Flat" que se tenham lido, não é bonita.

Apesar disso, Salvador tem sítios de uma beleza inacreditável, insuportável: hoje fui passear para um quarteirão pobre, uma dessas baías imbricadas na baía que, a certa altura, me fez pensar na Grécia, ou num país mediterrânico. Mas a pobreza, a sujidade, o cheiro feriam, agrediam, enfureciam - que desperdício, que inutilidade.

Esta cidade é uma cidade para todos os sentidos, mas exige uma carapaça, ou um optimismo, inexpugáveis.

Cada vez me é mais incompreensível porque gosto, cada vez mais, dela.