24 de dezembro de 2006

Norberto de Araújo mais uma vez

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Eu não sei se tu, que começas a ler esta história à espera dum romance de amor, mais nu e verdadeiro do que uma estátua nua, moras num bairro pobre ou num bairro rico, num sitio de Lisboa velha ou num quarteirão arejado de Lisboa moderna, cheinho de casas grandes, fechadas impenetráveis - como jazigos.

Naturalmente moras no teu bairro como eu moro no meu, e vives nele a vida de toda a cidade, cada bocadinho por sua vez, porque toda a vida duma rua escorre para a outra, e não há artéria da Lapa e da Estrela por onde não passe uma réstia de alegria dos bairros excêntricos, levada no pregão da varina ou na giga da rapariga que canta a sua fruta numa
toada de alfurja, estridente e resignada.

Ora tudo isto que te conto se passa num bairro humilde, e decorre quando extravasa o sítio original, em ruas que aos outros olhos parecem tristes e baças, onde as casas são sujas, as esquinas muito de quina, as soleiras baixas, e onde os gatos vivem com as crianças na mesma promiscuidade encantadora e repugnante.
São tão lindas as ruas pobrezinhas! Há tanta beleza no conjunto desairoso dos edifícios antigos a caírem, ruínas que remoçam todas as primaveras como as dos castelos lendários.
Nos bairros aristocráticos vive-se dentro. Nos bairros excêntricos vive-se fora. As casas de palácio e de grande estilo arquitectónico, repara tu que são esfingícas, mudas egoistas. Não tem traseiras: Estão sempre fechadas as janelas, não sei para que se fizeram. Prédios há, muito lindos, que são cómodas cujas gavetas nunca abrem. Entra-se neles por uma escada cuja porta cai pesadamente sobre nós. (...)
Nada respira tanto contentamento, felicidade tanta como a humildade. As ruas de Alfama velha, da Graça clara, da Alcântara feia, da Fonte Santa - dão saúde de dia e de noite
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Novela do Amor Humilde, Norberto de Araújo, 1924
(capa do Stuart, 1914)
Foto do Arquivo Municipal de Lisboa, Joshua Benoliel

Grande escritor e um amoroso de Lisboa, Norberto de Araújo é das minhas referências especiais na literatura portuguesa. É uma prosa ( e poesia), que inspira afecto e envolve. Agora desaprendeu-se de escrever assim. Quem nunca leu as Peregrinações em Lisboa, é favor de o fazer.
Por acaso, descobri o blog do bisneto dele, Miguel Araújo, ligado ao ambiente.
Achei interessante apesar de tudo a continuidade das preocupações familiares: o espaço e a qualidade de vida.
Véspera de Natal não é?

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado por relembrar Norberto de Araújo, que também foi jornalista tendo escrito artigos absolutamente soberbos. Poucos sabem que adorava jogar futebol e foi sócio fundador do S.L.Benfica. Aprofundando o conhecimento sobre a vida de Norberto de Araújo descobre-se nele alguém muito interessante, que viveu intensamente cada dia.
A