21 de dezembro de 2005

O senhor Miguel Ângelo


(Postal desenhado por Miguel Ângelo, para o Restaurante A Quinta, Passarelle do Elevador de Santa Justa
Panorama de Lisboa visto da quinta)

Há muitos anos, aconteceu o incêndio do Chiado. Nos poucos habitantes desalojados, existia um casal muito particular. A Dona Júlia, talvez parente afastada da Frutuosa, e o sr Miguel Ângelo.

Tratava-se de senhoria e de hóspede. Ela era uma fogosa senhora, que iria morrer sem aviso, alguns dias depois de ter sido realojada. Faltava-lhe o Chiado, a casa, as flores, os animais.

Fiquei eu com um filho nos braços, o Senhor Miguel . Era um antigo artista plástico, ex-bailarino, homem de uma grande doçura conjugada com uma grande revolta.
Tinha deixado de pintar e de ler. Por ele , enfrentei os ratos que proliferavam na antiga casa deles e salvei o mais que pude do recheio , convencendo os bombeiros que os livros eram um bem inestimável. Veio a colecção Argonauta toda entre muitas outras coisas. Nos meus pesadelos, ainda ouço os ratos a chiar.

Mais tarde ofereci-lhe tintas e papel. Começou a desenhar e a vender algumas coisas. Sempre vultos carbonizados a sépia do seu Chiado. Quando me quis oferecer um desenho, disse que queria cor. E ele exerceu-a.

Gostava muito de falar comigo e era raro o dia em que não me trazia um presente do seu passado. Um dia foi este postal. Outro dia uma nota de um rublo, imperial ainda.
Eu era um misto de mãe, amiga e não sei o quê mais. E adorava falar-me em francês.

Quando deixei de trabalhar directamente com famílias, uma das pessoas que me custou deixar foi o Senhor Miguel. Ele tratava-me por minha senhora e beijava-me a mão. Visitava-me às vezes.

Passados uns anos, foi-lhe atribuída uma casa da CML e diagnosticado um cancro na garganta. Encontraram-no morto.

Talvez recordar o Senhor Miguel no Natal seja importante por mim.Pelo afecto que me deu e que eu lhe dei. Vejo-o ainda a caminhar, sempre arranjado e com o seu lenço de pescoço ou cachecol. Era um senhor. E meu amigo.

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