17 de julho de 2005

Felícia

«Felícia não era bem dessas; estava a servir; não sabia a idade; dizia que nascera no tempo das castanhas, e que seu pai era miliciano de Chaves. Andaria nos dezasseis, e parecia de carne petrificada, rija, com uma frialdade de metal fundido, e nenhumas morbidezas feminis. O Justino nas mãos dela sofria amarfanhamentos rudes e boléus. Era possante, não se deixava abraçar, e um dia cascara com um engaço num oficial de diligências de Montalegre que lhe apalpara a polpa de um braço.»

«A primeira pessoa que viu a descer pelo recosto de um mato com um rebanho de ovelhas, que o fitavam pasmadas numas atitudes palermas, era Felícia, a impoluta, com a roca à cinta, rodopiando o fuso, saia de linho muito fresco apanhada na cintura em refegos inquietadores da honestidade, e uns traços de pernas trigueiras, com redondezas de barrigas muito gordas, e um colete de chita amarela com atacadores vermelhos que pojavam para cima os seios muito intumecentes e mordidos dos beijos do sol, com alguns sinais de pulgas.
E o arrieiro lúbrico[Frei Justino]:
- Oh que fatia! Um peixão! Hem? Ó senhor frei Justino! Aquilo é que é obra acabada! Boa Verónica! – E outras pachuchadas.»

«Aquele encontro, na aba da serra, parecia uma passagem antiga, bíblica. O rebanho das ovelhas brancas como o velo de Gedeão, a rapariga meiga com as branduras do olhar de Rebeca e Rute, e mais o frade escanchado no macho do Gaitas, a fugir da bíblia para o mito, por dar uns longes de Sileno. E o arrieiro de olhos acirrados, vorazes, um subalterno grotesco do Cântico dos Cânticos, achando aquela Sulamita barrosã, mais doce do que o vinho de Cabeceiras de Basto.
Disseram adeusinho, até logo, com muitos acenos. E o arrieiro queimado de concupiscências bestiais:
- Sim, senhor, é um bocado de coisa muito limpa! Pode-se ver, o diabo da mulher! Terra que dá desta fruta é boa terra. Ficaram-me os olhos no berzabu da moça! Tem ventas! e que pernas! – e outros canalhismos de sensualidades tarimbeiras que faziam rir o frade às escâncaras, como quem estava sequioso de pilhérias plebeias, reles.»

Custódia

«Cruzavam-lhe a curva opulenta dos seios as pontas franjadas de um xaile de caxemira amarelo com festões de flores rubras, que atavam atrás da cintura, dando um destaque às ancas muito reparado dos sensualistas das feiras e das romagens. No pescoço, redondo, com maciezas e tons alvos de leite, até à raiz dos peitos, tinha uma gargantilha de ouro e mais três cordões, com um crucifixo de uma esculturação antiga e rebelde às devoções sinceras, espiritualistas, por estar posto num calvário de enormes glândulas hemisféricas mais tentadoras que as visões lúbricas dos anacoretas.»

Camilo Castelo Branco – Eusébio Macário

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