22 de outubro de 2004

hoje não tive o 'inimigo público' nem o 'y'

costumo comprar o 'público' num café próximo de minha casa.
é uma espécie de ritual:
chego, digo bom dia e tenho um jornal em cima do balcão, junto com um café.

se o sporting ganha, perguntam-me se quero a 'bola' (se perde já sabem que não compro, que não sou masoquista).
este ritual tem anos.

hoje estava meio-fechado.
uma cruz na porta.
apenas um senhor vendia os jornais.
dei os bons-dias, pedi o 'público'.

como nunca faço perguntas e nem a minha curiosidade vai para essas coisas, não perguntei quem tinha falecido.
enquanto o dito senhor procurava no meio dos montes de jornais os não-encontrados suplementos, alguém perguntou quem tinha falecido.

- foi o sr. gomes, disse com um ar de fatalidade esperada.

o sr. gomes......

o sr. gomes foi a única pessoa que em toda a minha vida alguma vez se recusou a servir-me.
teria eu uns 20 anos, tal como os meus amigos todos.
todas as noites nos encontravamos num café onde igualmente se encontrava a 'nata' artistica do eixo queluz-amadora (não se riam... a nata era encabeçada pelo artur boal e outros pintores de não menos nomeada e alguns poetas (o ruy belo, não sendo presença constante, era frequente)
como quaisquer putos de 20 anos, queríamos salvar o mundo e tínhamos pressa.
odiávamos aquelas poses, aquelas conversas estéreis de intelectual amargurado e fazíamos notar isso. (por alguma razão o alves redol terá dito (aproximadamente, cito de memória) a uma sua admiradora que o queria conhecer que 'nunca devemos realmente conhecer as pessoas que admiramos. nunca são comos os imaginamos' ).

como os senhores eram respeitáveis e nós não, e nos portavamos mal, o senhor gomes decidiu que não nos servia mais.
não nos podia expulsar, mas não nos servia.
nem uma acareação com o dono do local, em que fizemos ver as nossas razões e os nossos direitos (que ele reconheceu) o fez demover.
continuavamos a ir lá, mas ele nunca se nos dirigia para perguntar o que queríamos.
se fosse com alguém, ele perguntava à pessoa que estava comigo o que queria e a mim não me dirigia palavra.
sempre o admirei por isso.
tinha personalidade. mesmo que não concordasse com ele.

passado muitos anos, vim encontrá-lo neste café junto a minha casa.
agora dono do local.
tratou-me como se nunca me tivesse visto.
com respeito.
embora fosse o filho que sempre lá estivesse, muitas vezes o via e cumprimentava.

hoje soube que o senhor gomes faleceu.
senti saudades

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